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26 de jan. de 2021

BOCA LIVRE – BICICLETA (1980)

 

Despontando no fim dos anos 70, como grupo de apoio a nomes como Edu Lobo e Milton Nascimento, o Boca Livre não parecia ser fadado a prosperar num projeto próprio.

À época, as gravadoras investiam apenas em artistas consagrados e música de baixa qualidade com maior apelo comercial. Nesse contexto, a proposta de um conjunto vocal com repertório focado em música brasileira de primeira linha, um domínio sobre o qual o consagrado MPB-4 já marcara território, não parecia promissora.

Tanto que o desacreditado quarteto formado originalmente por Maurício Maestro, Zé Renato, Cláudio Nucci e David Tygel teve que bancar com recursos próprios seu primeiro vinil de 1979. O resultado foi surpreendente: mais de 100 mil cópias vendidas a partir da divulgação (com perdão da expressão) “boca a boca”. Um êxito absoluto nas circunstâncias.

O disco que contém as manjadíssimas TOADA e QUEM TEM A VIOLA (em que já se evidenciara a genialidade criativa da dupla Cláudio Nucci e Zé Renato) foi marco na história da produção cultural independente. Coroado pelo sucesso, o Boca seria mais tarde convidado a integrar o seleto elenco da Polygram.

Antes disso, porém (já sem a presença de Nucci, substituído por Lourenço Baeta), o Boca aventurou-se por uma segunda empreitada independente: o disco BICICLETA.

A faixa que nomeia o álbum, de autoria de Zé Renato, é uma obra prima instantânea, tornando-se a mais popular do disco. Surpreendente para uma canção sem palavras para cantarolar, interpretada em formato vocalise.

Curiosamente, 36 anos após, a canção recebeu uma letra de Cláudio Nucci, sendo lançada com essa nova roupagem nas plataformas digitais com o subtítulo de LIBERDADE E MOVIMENTO, assinada por Zé Renato e Nucci.

Apesar da louvável iniciativa, não foi páreo para a insuperável versão original, brindada com o belíssimo arranjo vocal que era justamente seu diferencial.  De fato, parece que os três minutos intercalados entre o preparatório “um, dois... um, dois, três, quatro” e o derradeiro retinir de uma prosaica campainha de bicicleta, prescindem do ornamento de palavras: é MÚSICA em estado puro.

Na capa, guiada por uma revoada de pássaros coloridos e tendo como pano de fundo um azulíssimo céu pincelado com brancas nuvens, corre solta uma magrela (simbolizando a liberdade e o prazer de viver), parecendo oferecer carona ao ouvinte para embarcar na garupa dessa viagem sonora.

O maravilhoso disco emplacou outras canções (AS MOÇAS, UM CANTO DE TRABALHO, NENÉM). Ainda assim, vendeu menos que o álbum inicial, embora seja, no mínimo, tão bom quanto. Sem falar na ilustre presença de ninguém menos do que Tom Jobim ao piano (nas canções CORRENTEZA e SACI), além de Naná Vasconcelos, Leo Gandelman, Nélson Ângelo, Novelli, Danilo Caymmi e Paulo Jobim.

Inacreditavelmente, nunca saiu em CD.

Esse mesmo time (Maestro, Zé Renato, Tygel e Baeta) manteve-se inalterado até 1992. Após um período de dissensões, substituições e retornos, essa formação clássica voltou a vigorar em 2006 perdurando por mais 15 anos.

Em 2021, o conjunto tristemente se dissolveu, com a saída coletiva de Zé Renato, Baeta e Tygel inconformados com as posições políticas de Maurício, detentor dos direitos do nome artístico do grupo.

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FAIXAS:

01 – Um Canto de Trabalho (Nelson Ângelo e Cacaso)

02 – As Moças (José Renato e Juca Filho)

03 – Correnteza  (Tom Jobim e Luis Bonfá)

04 – Neném (Maurício Maestro)

05 – Porto Seguro (David Tygel e Márcio Borges)

06 – Bicicleta (José Renato)

07 – Saci (Paulo Jobim e Ronaldo Bastos)

08 – Passarinho (Lourenço Baeta)

09 – Boi do Maranhão (Sérgio Habibe)

10 – Arado (Dalmo Medeiros)

11 – Nossa Dança (Danilo Caymmi e Ana Terra)



24 de jan. de 2021

GENIVAL LACERDA – AQUI TEM CATIMBERÊ (1975)

 

Não se sabe se ‘forró’ deriva de ‘forrobodó’ (festança) como dizem alguns etimólogos ou se é uma corruptela da expressão em inglês ‘for all’ como sustenta outra ala, em que se inclui, por exemplo, Geraldo Azevedo. O que é certo, no forró, é que, como diz a canção de Dominguinhos, ‘quem tá fora quer entrar mas quem tá dentro não sai”.

Controvérsias à parte, o forró é consensualmente uma autêntica manifestação cultural do Nordeste como a literatura de cordel, a capoeira e o acarajé, havendo inclusive uma iniciativa junto ao IPHAN para torná-lo patrimônio imaterial do Brasil.

Através de sua vertente ‘forró universitário’, conquistou a juventude dos grandes centros do Sudeste, com conjuntos de sucesso baseados no eixo SP/RJ como Falamansa, Rastapé, Bicho de Pé, Circuladô de Fulô, Trio Virgulino, Trio Forrozão, Forroçacana. A despeito das reservas dos puristas, esse movimento musical urbano, que teve seu auge nos anos 90, nunca deixou de se conectar aos grandes nomes tradicionais do forró e afins (xote, baião, xaxado, arrasta-pé).

Percebendo esse potencial, a indústria cultural criou mais recentemente uma versão estilizada, o ‘forró eletrônico’ ou ‘tecnobrega’ (apelidada por Chico César de ‘forró de plástico’). Grupos como Mastruz com Leite, Limão com Mel, Calcinha Preta, Aviões do Forró e Os Magníficos (curiosamente, todos sediados no Nordeste) arrastavam multidões a seus shows pirotécnicos cujas performances glamourizadas pouco lembram a coreografia singela do “forró pé de serra” de Luiz Gonzaga. A soberana sanfona foi destronada e substituída pelo órgão eletrônico e às imprescindíveis picardias foram adicionadas fúteis temáticas românticas.

Nesse universo, o som de Genival Lacerda soava extemporâneo, assim como suas apresentações, onde estavam presentes o indefectível chapéu coco, a roupa multicolorida e a maneira singular de se requebrar desengonçado no palco, carregando o barrigão saliente. Suas letras eram carregadas de deboche e ressaltavam a malícia e o duplo sentido. Devido a isso, alguns tachavam sua música de porno-xote, pecha que o artista, ofendido, rejeitava, alegando, por exemplo, jamais ter lançado mão de palavrões.

Conforme explica o músico Silvério Pessoa (da banda Cascabulho), “Genival fez parte de um clã que está em extinção, o forró ligeiro quebrado, dividido, lúdico.” Tendo como suporte o trio básico acordeon/zabumba/triângulo que caracteriza o forró de raiz, bebeu direto das fontes originais que moldaram seus álbuns iniciais quando ainda não dava tanto espaço para as brejeirices que viriam a marcar a segunda metade da sua carreira.

Enfim, um genuíno representante da primeira geração do forró que inclui nomes emblemáticos como Ary Lobo, Gordurinha, Marinês, Clemilda, Anastácia, Trio Nordestino e sobretudo os gigantes Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Em sua discografia, constam aliás um tributo a Jackson do Pandeiro (que era aliás seu concunhado) e outro em que revisa a obra de Luiz Gonzaga (participação de Fagner, Elba Ramalho e Chico César).

Embora tenha gravado mais de 70 álbuns, consagrou-se mesmo com a música SEVERINA XIQUE XIQUE (co-autoria com João Gonçalves) de 1975 com o famoso refrão “ele tá de olho na butique dela” que se tornou sua marca registrada e estendeu seu prestígio para todo o país. A canção ganhou releitura de uma pá de artistas de renome: Zeca Pagodinho, Marisa Monte, Nando Reis, Zeca Baleiro, MPB-4, Pato Fu.

A faixa puxou as vendas do álbum AQUI TEM CATIMBERÊ, selo Copacabana. Curioso que essa gravadora, sediada em São Paulo, embora tivesse em seu elenco muitos intérpretes populares, não era especializada em música nordestina e resistiu em bancar o projeto de Genival, cujo lançamento acabaria por lhe render 800 mil cópias vendidas.

O álbum NÃO DESPREZE O SEU COROA (1979) denota outro ponto alto na carreira do artista paraibano. Com arranjos de Sivuca e a presença de Dominguinhos, esse disco traz os hits ROCK DO JEGUE (referenciado em uma faixa do único disco dos Mamonas Assassinas) e RADINHO DE PILHA (regravada pelo grupo Camisa de Vênus).

Descontando suas capas de gosto duvidoso em que aparece ao lado de mulheres de biquíni, e as letras com tom machista (“tem mulher que só aprende quando o coro desce” in RADINHO DE PILHA), que retratam os preconceitos e os valores de grande parte do seu público, Genival é um exímio cronista de costumes que carrega o espírito original do forró voltado ao indivíduo das classes menos favorecidas e aos contratempos dos imigrantes, amenizados com humor.

Como diz Marcelo D2: “(ele) faz lembrar a alegria do Brasil, me conecta com meus antepassados e traz uma sensação boa de felicidade”.

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Faixas:

1- Severina Xique-Xique (João Gonçalves/Genival Lacerda)

2- A Filha de Mané Bento (João Gonçalves/Genival Lacerda)

3- Deixem Ela Sofrer (Joca de Castro/Genival Lacerda)

4- Bahia do Catimberê (Haroldo Francisco/Orlando Deco)

5- Benzinho (Brito Lucena)

6- Ela É do Contra (Durval Vieira)

7- Para Papagaio (Antônio Barros)

8- Meu Barco Afundou (Luis Boquinha)

9- Leão de Cafieira (Severino Ramos)

10- Vamos Brincar de Roda (João Gonçalves/Genival Lacerda)

11- Morena Faceira (Brito Lucena)

12- Tenente Bezerra (Gordurinha)

OS BORGES (1980)

Embora o jornalista mineiro Salomão Borges não tivesse se dedicado à música, era por ela um aficionado. Isso explica a paixão de 7 dos seus 11 filhos pela arte. Aquele que herdou o nome do pai, Salomão Borges Filho, o 6º da linhagem, mais conhecido como Lô Borges, tornou-se o mais famoso da prole. É co-responsável por aquele que é unanimemente considerado um dos principais álbuns da história da MPB, o antológico CLUBE DA ESQUINA de 1972 ao lado de Milton Nascimento, além de ter uma carreira solo bem sucedida sintetizada em quase 20 álbuns.

O primeiro deles, o famoso “disco do tênis” saiu no mesmo ano, 1972, seguido de VIA LÁCTEA de 1979 e SONHO REAL de 1981. Entre esses dois últimos, OS BORGES que, embora costume aparecer na discografia de Lô, não deveria, por justiça, ser exclusivamente a ele creditado. O cantor e compositor mineiro, já consagrado, participa interpretando apenas duas músicas, procurando dar espaço para que seus irmãos revelassem seus dotes.

Sob a batuta do velho Salomão e de Dona Maricota, progenitora da clã (que para não destoar da moçada, era pianista), desfilam os brothers Márcio, Yê, Marilton, Nico, Telo e Solange Borges (única representante do sexo feminino). Destaque para Márcio Borges, outro que se projetara como compositor e letrista em célebres parcerias com a trupe do Clube da Esquina.

OS BORGES foi um projeto despojado de Lô com a intenção de registrar em vinil o ambiente cultural reinante em seu apartamento em Belo Horizonte. A capa que traz uma foto do quarto dos “meninos”, revela esse clima com pôsteres e instrumentos espalhados pelo chão. Retratos dos 4 Beatles no canto superior não escondem uma das principais influências.  

A faixa de abertura “Em Família” (Márcio e Yê) interpretada por todos traduz a empatia entre irmãos afins (“Na minha casa tem mulher que briga, na minha casa tem homem que chora”).

A atmosfera caseira do projeto oculta algumas participações inacreditáveis. Em “Carona”, ao lado de Marilton, a presença de um tal de Gonzaguinha. Na faixa derradeira, “Pros Meninos”, ao lado de Nico, comparece Milton Nascimento. Em “Outro Cais” a canja especial é de ninguém menos do que Elis Regina (a própria).

Destacam-se “Ainda” e a gravação original de “Voa Bicho”, ambas de Telo e Márcio, com orquestração de Guilherme Arantes. Essa última ficou mais conhecida ao ser regravada por Milton Nascimento e Maria Rita no disco Pietá de 2003.  

A galeria de fotos que encarta o LP revela que as sessões de gravações contaram com outros bambas: Toninho Horta, Naná Vasconcelos, César Camargo Mariano, Nivaldo Ornelas, Marçal, Fredera...

O vinil dessa obra prima era disputadíssimo, até que a EMI/Odeon dignou-se em lançá-lo em CD em 2002. A má notícia é que quem quiser adquiri-lo vai ter de desembolsar uma pequena fortuna pois está fora de catálogo e, assim como o LP, é raro.

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Faixas:

1. "Em Família" (Márcio Borges, Yé Borges) - Os Borges 4:08

2. "Carona" (Marilton Borges)  Marilton Borges (Partic: Gonzaguinha) 2:53

3. "Voa, Bicho" (Márcio Borges, Telo Borges) - Telo Borges/Solange Borges 3:50

4. "Um Sonho Na Correnteza" (Márcio Borges, Yé Borges) Solange Borges/Yé Borges 3:08

5. "Ainda" (Márcio Borges, Telo Borges)- Telo Borges/Marilton Borges 3:29

6. "O Sapo" (Tradicional) - Os Borges 2:20

7. "Eu Sou Como Você É" (Lô Borges) - Lô Borges/Marilton Borges 3:41

8. "Outro Cais" (Duca Leal, Marilton Borges) - Elis Regina 2:03

9. "No Tom De Sempre" (Márcio Borges , Chico Lessa) - Chico Lessa/Lô Borges 3:57

10. "Qualquer Caminho" (Márcio Borges) - Márcio Borges/Marilton Borges 3:17

11. "Daniel" (Nico Borges, Solange Borges) - Solange Borges 3:17

12. "Pros Meninos" (Duca Leal, Nico Borges) - Nico Borges/Milton Nascimento 4:38

 

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