“Opinião” foi um célebre espetáculo teatral e musical que
estreou no RJ em 1964 e promoveu um improvável encontro de artistas: Nara Leão,
branca, classe média carioca, com boa formação, bossa-novista, simbolizando a universitária
engajada; João do Vale, negro, pobre, nordestino, semi-analfabeto, cantor de
baião representando o retirante. Completando o trio, Zé Keti, também negro e
pobre, personificando o sambista malandro do morro, igualmente excluído. Três
músicos de distintos perfis unidos num manifesto de resistência contra o regime
militar recém empossado. Duas canções do show (que se tornou também um LP de
sucesso) destacaram-se: a música tema “Opinião” (“podem me bater, podem me
prender...”) de Zé Keti e “Carcará” (“pega, mata e come”) de João do Vale.
“Carcará” tornou-se
um hino de protesto, embora originalmente nem tivesse esse propósito. Na
conjuntura, a ave de rapina do título passou a encarnar a ditadura repressiva.
A canção foi recheada de estatísticas sobre o êxodo de nordestinos e bombou com
a interpretação lancinante de Maria Bethânia (que substituiu Nara no segundo
ano do espetáculo). Foi o primeiro hit da cantora baiana puxando as vendas de
seu LP de estreia.
Na esteira do sucesso alcançado, João lançou aquele que
viria a ser seu único disco solo: O POETA DO POVO (1965) pela Philips (jamais
editado em CD), contendo “Carcará” e mais onze faixas de sua autoria, quase todas
em parceria. Um dos mais assíduos parceiros, Luiz Vieira, em depoimento para o documentário
“Muita Gente Desconhece”, afirma que João necessitava sempre de um colaborador
para dilapidar a pedra preciosa bruta que intuitiva e desordenadamente compunha,
para que lhe fosse dado um formato bem acabado.
Apesar de o disco solo não ter repetido o sucesso de
OPINIÃO, várias composições de João emplacaram na voz de outros intérpretes,
vindo a se tornar clássicos do cancioneiro popular. As mais famosas: “Canto da Ema”
(com Gil), “Coroné Antônio Bento” (com Tim Maia) e “Na Asa do Vento” (com Caetano).
Essas três gravações antológicas mais “Carcará” com
Bethânia foram reunidas num único disco, um fascículo da série NOVA HISTÓRIA DA
MÚSICA BRASILEIRA lançado pela Abril Cultural em 1970 comercializada
exclusivamente em bancas de jornal, tendo alcançado expressivas vendas. Cabe
assinalar que essa coleção da Abril talvez tenha sido a maior e mais completa
compilação que se tem notícia na história da nossa música. Foi resultado de um
acordo com as principais gravadoras, tendo sido convocados como colaboradores os
mais renomados críticos musicais da época, os quais selecionavam o repertório e
escreviam os textos que acompanhavam os discos.
Os fascículos dedicados a João do Vale (duas edições já que
a série teve um repeteco dez anos após) ganharam especial projeção em
decorrência das peculiaridades que cercaram a trajetória do artista. Costumam
ser citados como parte de sua discografia em função da ausência de outros
registros fonográficos desse genial compositor.
Decorridos 16 anos de seu disco solo, João voltou aos
estúdios por iniciativa de Chico Buarque, um grande admirador. Na pauta, o
lançamento de um álbum que fizesse jus à grandeza do músico maranhense. O disco
chamou-se apenas JOÃO DO VALE, saindo pela CBS (1981). Na retaguarda, uma série
de acompanhantes pra ‘cabra’ nenhum botar defeito. Além do próprio Chico,
compareceram Tom Jobim, Fagner, Gonzaguinha, Alceu Valença, Zé Ramalho, Jackson
do Pandeiro, Nara Leão, Clara Nunes e Amelinha, cada um acompanhando o músico
numa faixa. Treze ao total, sendo dez em duetos e três desacompanhadas. Dentre
elas, a belíssima “Minha História”, melancólico baião autobiográfico que anos
mais tarde seria regravada por Chico Buarque (não confundir com a homônima versão
de uma canção italiana de Lucio Dalla gravada por Chico em 1971). A
interpretação de João acompanhado apenas de um violino ao fundo é de arrepiar.
Ao contrário dos
fascículos da Abril que compilaram gravações de épocas distintas, numa colcha
de retalhos, este empreendimento envolvendo tantos artistas de renome foi especialmente concebido como parte de um
projeto específico.
João do Vale teve ainda um último tributo, também produzido
por Chico Buarque, um álbum lançado exclusivamente em CD, JOÃO BATISTA DO VALE
(1994) com a presença de outra penca de nomes da primeira linha da MPB, só que
nesse caso sem a presença do homenageado que se encontrava adoentado, com renda
a ele revertida.
Ainda que com o peso dos convidados, as vendas desses dois
discos estiveram aquém do esperado. Talvez a figura de João tivesse sido
estigmatizada pelos ares do protesto que se esvaíram com o tempo. Ainda que
essencialmente revolucionária, a arte de João não teve o cunho político que
dela fizeram uso. Além disso, talvez o
público já se identificasse com as consagradas versões, tornando repetitivas
novas edições.
Em 1996, João morreu quase tão pobre quanto nasceu.
Desfecho presumível para a triste trajetória narrada em “Minha História”. Reverenciado
por artistas, críticos e intelectuais mas sem jamais ter angariado a mesma atenção
do grande público a quem sua arte era dirigida e cujas angústias e dramas sua
música tão bem retratava.
.
Faixas:
01 - Na Asa do Vento (Luis Vieira - João do Vale)
02 - Pé do Lajeiro (Aonde a Onça Mora) (João do Vale - José Cândido) (Com Tom Jobim)
03 - Estrela Miúda (Luis Vieira - João do Vale) (Com Amelinha)
04 - Bom Vaqueiro (João do Vale - Luis Guimarães) (Com Fagner)
05 - O Canto da Ema (Alventino Cavalcanti - Aires Viana - João do Vale) (Com Jackson do Pandeiro)
06 - Carcará (João do Vale - José Cândido) (Com Chico Buarque)
07 - Morceguinho (O Rei da Natureza) (José Cândido - João do Vale) (Com Zé Ramalho)
08 - Morena do Grotão (João do Vale - José Cândido)
09 - Oricuri (Segredo do Sertanejo) (João do Vale - José Cândido) (Com Clara Nunes)
10 - Fogo no Paraná (João do Vale - Helena Gonzaga) (Com Gonzaguinha)
11 - Pipira (João do Vale - José Batista) (Com Nara Leão)
12 - Pisa na Fulô (João do Vale - Ernesto Pires - Silveira Júnior) (Com Alceu Valença)
13 - Minha História (João do Vale - Raimundo Evangelista)
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